Marcados pela exclusão, alunos transgêneros incitam debate sobre
liberdade
de sexo e gênero na escola
Rafael Gregório e Tory Oliveira[1]
Na Argentina, a mãe de Lulu conseguiu
mudar na Justiça o nome
de batismo masculino da filha
|
Desde a infância,
David Cristian, 23 anos, sentia-se diferente das demais meninas. O jovem,
natural de Florianópolis (Santa Catarina), começou a se vestir como um garoto
aos 13 anos e há um ano e meio iniciou tratamento psicológico e hormonal para
adequar seu corpo ao gênero masculino, com o qual se identifica. Cristian é um
transgênero, como são chamados homens e mulheres que sentem inadequação extrema
com o sexo biológico de nascimento. Identificado como transtorno de identidade
de gênero pelos médicos, o fenômeno, frequente e erroneamente confundido com a
homossexualidade, pode ser um atalho para depressão, discriminação e
isolamento, em especial no caso de crianças e adolescentes em idade escolar.
Para Cristian, que
hoje vive em Curitiba, a maior parte das lembranças da escola, quando ainda
vivia como menina, são de ameaças de colegas e funcionários. “Uma inspetora
disse para eu ir embora, porque ninguém gostava de mim lá”, conta ele. Além de
lhe acarretar uma depressão, a hostilidade o fez interromper os estudos duas
vezes. Formado, Cristian hoje espera a mudança do nome na carteira de
identidade para começar uma faculdade.
Violência e
preconceito explicam a incorreta associação entre identidade de gênero e
vontade pessoal. São também as razões da alta evasão escolar identificada por
profissionais da educação. “Muitos não conseguem concluir nem o Ensino
Fundamental, e 99% não chegam à universidade”, explica a professora transgênero
Marina Reidel, autora de dissertação de mestrado na UFRGS sobre a trajetória de
professores travestis e transexuais (que buscam correção cirúrgica para o que
veem como distorção anatômica). Sem acesso ao estudo e, consequentemente, ao
mercado de trabalho, a maioria cai na prostituição.
Além das agressões
físicas e verbais, discriminações cotidianas, como a negativa de uso do nome
social (denominação pela qual preferem ser chamados no dia a dia) e a proibição
de frequentar o banheiro reservado ao gênero de identificação, são obstáculos
adicionais. Para Marina, em vez de disseminar valores de tolerância, a escola
é, no mais das vezes, um ambiente aterrorizante para os transgêneros.
Leonardo C., 17 anos,
nasceu Luana*. Na adolescência, contudo, em nome de “ser quem eu era”, desistiu
de agradar à mãe e abandonou as roupas e a aparência femininas. “Todo mundo
repara em mim. Como sou tímido, tento me esconder ao máximo”, diz o hoje aluno
do 3º ano do Ensino Médio em uma escola pública de Ituitaba, Minas Gerais. Ele
também diz ser recriminado pela diretora da escola, que, ao pedido para ser
chamado pelo nome social, respondeu-lhe que não havia lei que a obrigasse e que
ele “queria aparecer”. O aluno mostra-se resignado: “Tento pensar que a escola
já está acabando”.
Reminiscências
amargas de apelidos e xingamentos também predominam para Brendda Montilla, 17
anos, que diz sentir-se diferente dos demais meninos desde as primeiras séries,
em Almirante Tamandaré, no Paraná. “Os casos de tolerância que encontrei foram
por boa vontade dos professores, porque nem eles nem os alunos foram preparados
(para o tema)”, opina.
A falta de instruções
é tida como a fonte principal da disseminação do preconceito. “O problema
começa em colocar fundamentalismo religioso antes do saber pedagógico. (As
pessoas) precisam compreender que a escola não é seu quintal ou sua igreja”,
opina Laysa Carolina Machado, 42 anos, diretora do Colégio Estadual Chico
Mendes, em São José dos Pinhais, na Grande Curitiba – a primeira transexual a
ser eleita para cargo semelhante no Brasil ( depoimento nesta página). “Há um
déficit muito grande na formação do professor e também um medo de abordar
certas questões”, opina a professora Marina.
Episódios como as
hostilidades contra transgêneros no último Enem corroboram o cenário de
despreparo. “Quando cheguei, a fiscal ficou questionando em voz alta na entrada
da sala por que meu documento trazia nome e foto de homem”, relata Ana Luiza
Cunha da Silva, 17 anos, aluna do 3º ano do Ensino Médio em uma escola
particular em Fortaleza. O RG dela ainda foi conferido outras três vezes por funcionários
diferentes até que um superior solucionasse o caso, registrando-o em um
formulário de perda de documento, ela diz. Antes, porém, outra fiscal “ficou
colocando a foto ao lado do meu rosto e dizendo ironicamente que não podia ser
a mesma pessoa”. A estudante foi liberada após 30 minutos e só não perdeu tempo
de prova porque chegou uma hora antes do início do exame.
O relato é semelhante
ao da paraense Beatriz Marques Trindade Campos, 19 anos, que hoje cursa o 2º
período de Direito na Unifemm, em Sete Lagoas (MG). “Entreguei meus documentos
e a fiscal não me reconheceu, ficou perguntando se era eu mesma e gritou meu
nome de batismo para me expor. Ela realmente não estava preparada”, lamenta.
Apesar dos
constrangimentos, Ana Luiza e Beatriz são pontos fora da curva no que diz
respeito ao apoio familiar. “Foi um choque, mas procuramos dar todo o apoio em
sua vida”, afirma Fábio Luiz Ferreira da Silva, 39 anos, médico veterinário e
pai de Ana Luiza (depoimento à pág. 26). A colaboração mais recente foi o
pedido de mudança de nome na Justiça, protocolado por ele. O segredo da
compreensão, afirma, é simples: “A gente se gosta muito lá em casa eu aprecio
o debate de idéias. Focamos em tratar a pessoa como você gostaria de ser
tratado. Não tem nenhum ensinamento a não ser o amor e o diálogo”. A maioria
dos transgêneros, porém, não tem a mesma sorte: “Uma amiga transexual de 18
anos foi há pouco expulsa de casa e teve de trabalhar na prostituição”, relata
Ana Luiza.
Inexiste consenso
sobre o número de estudantes que questionem o próprio gênero no Brasil, muito
menos sobre as taxas de evasão escolar desse público. Também faltam dados sobre
o número de transexuais e travestis adultos, em parte porque não há no
formulário do Censo do IBGE questão específica sobre a identidade de gênero do
declarante. “Estima-se que haja atualmente 2 milhões de trans no Brasil”,
afirma a professora Marina.
Professor da PUC-SP e
coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação
Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, o psiquiatra Alexandre Saadeh, 52
anos, dá outra estatística sobre o número de pessoas que questionam o sexo
anatômico na juventude. “Nos países ocidentais, a média é de um a cada 100 mil
homens e de uma para cada 400 mil mulheres.” Composto de, aproximadamente, 15
profissionais de saúde, o núcleo que ele comanda provê, desde 2010, tratamento
psicoterápico para adolescentes – são hoje cerca de 30 pacientes, seis dos
quais crianças – e, neste ano, começou a praticar terapias hormonais.
Também falta consenso
sobre a natureza do fenômeno, no que especialistas e transgêneros alternam
compreensões ligadas à psiquiatria, à psicologia ou mesmo a nenhuma delas, em
um movimento de “despatologização” da transexualidade.
“Os transexuais têm
pouco acesso aos serviços de saúde e, por isso, vivem uma vulnerabilidade e uma
situação de exclusão social”, afirma Judit Lia Busanello, 48 anos, psicóloga e
diretora-técnica do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais.
Vinculado ao Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS da Secretaria da
Saúde do Estado de São Paulo, o núcleo oferece fonoaudióloga, endocrinologista,
clínico geral, urologista, proctologista, psicólogo, psiquiatra e assistente
social para um total de 1.860 pacientes cadastrados desde junho de 2009.
Desses, 70% são mulheres transexuais (nascidas no sexo anatômico masculino),
cujo tempo de acompanhamento chega, em média, a dois anos e meio. Sem contar a
fila de três a seis meses: “hoje trabalhamos acima de nossa capacidade”, diz
Judit.
“Até os anos 1980, as
teorias em voga eram psicológicas. Hoje se correlaciona o transtorno de gênero
ao desenvolvimento cerebral intrauterino”, defende Saadeh. Com base nesse
entendimento de “um processo essencialmente biológico”, ele afasta a
possibilidade de que crianças sejam transexuais por influência de outras
pessoas ou questões sociais. O médico também rechaça a eventualidade de que
transgêneros influenciem colegas. “Não acredito de maneira alguma nisso. Se
assim fosse, todo mundo se contaminaria com a heterossexualidade, a orientação
predominante”, afirma.
No Brasil, a cirurgia
para mudança de sexo é feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e após os 21
anos, conforme parecer de 2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM). O
tratamento hormonal é possível a partir dos 18, mas, em 2013, outro parecer do
CFM recomendou o bloqueio da puberdade do gênero de nascimento (não desejado).
A favor do retardo, os especialistas apontam fatores como a prevenção a
sofrimentos psicológicos comuns nesse público, como depressão, anorexia e
tendência a suicídio, além da oferta de mais tempo para aprimorar o diagnóstico
e da prevenção a cirurgias mais invasivas no futuro. O parecer não tem força de
lei e já enfrenta resistências. Ainda assim, pode direcionar protocolos sobre o
tratamento e ampliar a oferta de acompanhamento médico.
O tempo é mesmo um
obstáculo para quem questiona o gênero. A maioria sente desconforto desde a
primeira infância e assiste impotente ao desenvolvimento, na anatomia, de
sinais contraditórios com relação ao próprio sentimento. “A identidade de
gênero se manifesta por volta dos 3 ou 4 anos. Deve-se ficar atento e buscar
orientação de centros especializados”, diz o psiquiatra Saadeh. Ele condiciona
o diagnóstico à convicção “responsável, duradoura e consistente” e defende que
a criança use o nome e as roupas que desejar. Também é importante, diz, que os
pais orientem professores e assistam os filhos em sua transformação na escola.
“Todas as crianças que acompanhamos estão bem adaptadas e vivem 24 horas assim.
Se antes eram meninos deprimidos, irritados, agressivos, agora são meninas
doces, que interagem com os outros. O ganho é o bem- estar psicológico de não
mais sentir que se está fazendo algo errado”, ele diz.
Leonardo Tenório, da
Associação Brasileira de Homens Trans, defende a criação de políticas
específicas nas Secretarias de Educação. Para ele, a descentralização da
educação pública brasileira atrapalha. “Cada escola tem seu próprio Plano
Político Pedagógico. Dependemos da sensibilidade de cada gestor”, explica.
A criação de leis
para articular a inclusão escolar dos transgêneros e proteger seus direitos nas
escolas é um dos sonhos do estudante Leonardo. “Este é o meu último ano na
escola, mas sei que os muitos trans que virão depois vão sofrer também”, conta.
“Penso que seria mais justo o Enem disponibilizar a opção para transgêneros já
na ficha de inscrição”, defende Silva, o pai de Ana Luiza. Na visão dele, isso
ajudaria a evitar constrangimentos amplificados pelo fato de que as salas do
exame são usualmente divididas conforme o nome de candidatos e candidatas.
Para quem vive a
causa ou a defende, a prioridade é combater a invisibilidade a que a sociedade
submete quem questiona o sexo biológico. A demanda mais recorrente ouvida pela
reportagem foi pela inserção da pergunta específica de gênero no Censo. Segundo
o IBGE, antes da realização do próximo Censo, em 2020, o instituto vai, como de
costume, consultar a sociedade para avaliar a necessidade e a conveniência de
“revisão dos tópicos tradicionalmente investigados” e de “novas necessidades de
dados, sempre observando as recomendações internacionais”. A diretora
paranaense Laysa, que também é atriz e escritora, sintetiza esse sentimento
comum: “Espero que em alguns anos possamos nos ver em novelas e em outros
papéis que não sejam os da palhaça caricata ou da trans assexuada”.
SOFRI TODOS OS PRECONCEITOS POSSÍVEIS NA ESCOLA”
LAYSA CAROLINA MACHADO, 42 ANOS, diretora |
Sempre soube da minha condição. Na infância era natural. Eu nunca achei
errado. Foram os outros que colocaram na minha cabeça que vestir roupas
femininas ou brincar de boneca era ruim.
Fui discriminada em todas as instituições em que estudei e tentei
sublimar minha essência. No dia 31 de dezembro de 1999, porém, iniciei minha
vida trans. Perdi empregos e busquei na estabilidade de um concurso público a
chance de viver plenamente minha identidade de gênero.
Iniciei minha carreira como professora de História, Geografia e Teatro.
Sou diretora desde 2009, quando fui eleita com meus dois amigos Gisele Dalagnol
e Ivan Araújo. Cuidamos de, aproximadamente, 1,6 mil alunos dos Ensinos Médio e
Fundamental. Minha relação com eles é ótima, e com os pais também. Sou
respeitada e me sinto querida, acolhida e amada.
“NÃO TEM NENHUM ENSINAMENTO A NÃO SER O AMOR E O DIÁLOGO”
FÁBIO LUIZ FERREIRA DA SILVA, 39, médico veterinário |
Há três anos, Ana Luiza nos contou que se sentia uma mulher em um corpo
masculino. Já dava sinais, mas pensávamos que podia ser questão de influência,
de andar só com meninas.
Conversamos em uma reunião em família. Foi uma semana sem dormir. Mas se
para mim e minha esposa foi difícil, me coloco no lugar dela, alguém de 13, 14
anos que ensaia noites a fio como dizer algo tão difícil.
Nossa família é muito católica. Os mais próximos vão sabendo aos poucos.
É um processo. O nome, por exemplo. Chamávamos de Luiz Claudio, depois de Lu. E
meu filho mais novo me cobrava, mas achei melhor ser natural do que agir com
hipocrisia. Liberamos aos poucos roupa, maquiagem.
A aparência dela mudou muito no último ano. Tem psicóloga, mas é duro
achar psiquiatra e endocrinologista que atendam o caso.
Alguns nos criticam por sermos apoiadores. Acham que desprezar ou botar
pra fora de casa poderia resolver, como se fosse algo que a pessoa escolhe. Mas
ninguém decide passar por isso. A vida é um fenômeno que acontece. Depois que
você está instalado, aprende a viver.
REJEIÇÃO E INTOLERÂNCIA
Uma das poucas aferições já realizadas no Brasil sobre a transfobia (aversão a transexuais e transgêneros) revelou que 24% das pessoas não gostariam de se encontrar com transexuais (10% disseram sentir repulsa/ódio e 14%, antipatia) e 22% não gostariam de dividir espaço com travestis (repulsa/ódio e antipatia foram citados por 9% e 13%, na ordem). Os dados são da pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, da Fundação Perseu Abramo. De acordo com o 2º Relatório sobre Violência Homofóbica, em 2012 foram registradas 3.084 denúncias de violações à população LGBT, com 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos – alta de 166% perante a 2011. No período, foram reportadas 27 violações homofóbicas de direitos humanos por dia. Em 2011, 10,6% das vítimas foram travestis, enquanto mulheres trans foram 1,5% e homens trans, 0,6%. Já em 2012, o porcentual de travestis e transexuais agredidos caiu para 1,4% e 0,49%, na ordem. Para a Secretaria de Direitos Humanos, contudo, a queda não denota diminuição da violência, mas crescente “invisibilização” de uma população vulnerável.
Saiba Mais:
Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de
Referência e Treinamento DST/AIDS-SP
Rua Santa Cruz, 81,
Vila Mariana, São Paulo, SP. Tel (11) 5087-9833
Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual
(Amtigos) – Hospital das Clínicas
Rua Dr. Ovídio Pires
de Campos, 785,
São Paulo, SP. Tel (11) 2661-8045
Disque Direitos Humanos Disque 100 http://www.sdh.gov.br/
Disque Direitos Humanos Disque 100 http://www.sdh.gov.br/
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais Avenida Afonso Pena, 867, Sala 2.207, Belo Horizonte, MG. Tel. (31)
8817-1170. www.abglt.org.br
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
E-mail:direitoshumanos@sdh.gov.br.Tel(61) 2025-9617
[1]Nome trocado para preservar a privacidade do entrevistado -
Publicado na edição 82, de dezembro de 2013 - Fonte: http://www.cartanaescola.com.br/single/show/262
Publicado na edição 82, de dezembro de 2013 - Fonte: http://www.cartanaescola.com.br/single/show/262
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