segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Primeira Juíza negra do país lança livro sobre o negro no século XXI

Ana Cristina Pereira | Redação JORNAL CORREIO DA BAHIA

O tom impessoal do livro O negro no século XXI é apenas uma opção estratégica. Escrito pela juíza baiana Luislinda Dias de Valois Santos, 67, reúne artigos sobre temas variados como cultura, educação, políticas públicas, justiça social e religião. Todos mediados pela experiência negra no país pós-escravidão.
Luislinda foi a primeira negra brasileira
a entrar para a magistratura
F
oto: Divulgação/Ricardo Prado 
Poderia ser a história da própria Luislinda, que teve avô escravo, pai motorneiro de bonde, cuidou dos irmãos menores quando a mãe morreu precocemente e só se formou advogada aos 39 anos. E era essa mesmo a intenção, quando ela começou a escrevê-lo.
Seria um desabafo diante de mais uma situação difícil: dois processos contra ela , já arquivados por falta de provas, no Tribunal de Justiça da Bahia. Isto foi no início desta década. “Não fiz pesquisas. Tudo que falo é por conhecimento de causa”, afirma Luislinda, que lança o trabalho quarta- feira, às 19h30, na Saraiva Megastore (Salvador Shopping).
Sobre a escola pública, por exemplo, fala com intimidade. Foi no Colégio Duque de Caxias, na Liberdade, que ouviu a sentença de um ex-professor, irritado por causa de seu pobre material escolar: “Se não pode comprar é melhor parar de estudar e ir cozinhar feijoada na casa de branca”.
E se o tema é religião, recorda, foi testemunha das idas e voltas da tia Helena Grande a uma delegacia para pegar autorização para o funcionamento do terreiro de candomblé, no bairro de Pirajá.
Mas Luislinda resolveu tirar o foco de si mesma, e tratar de temas caros à maioria. Como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, que defende com veemência. “O sistema de cotas aproxima pessoas que vivem de forma desigual”, defende a magistrada, que integrou a equipe que implantou a medida na Uneb.
Ela também defende a ampliação das cotas para setores como o serviço público. “Precisamos ter mais médicos, engenheiros e juízes negros. É preciso oportunizar. A competência e a inteligência não são privilégios de uma única raça”, discursa.
Guerreira
Mãe do promotor de justiça Luis Fausto - que atua em Sergipe -, e avó de duas meninas, Luislinda diz que sempre falou para eles que ser negro é maravilhoso. Mas também que não era para deixar ninguém tomar conta deles. “Sou muito séria nas minhas posições. Não posso vacilar, afinal sou negra, pobre, vim da periferia, sou divorciada e ainda sou rastafári”, brinca.
Primeira juíza negra brasileira, Luislinda também foi a primeira a dar uma sentença tendo como base a Lei do Racismo. Foi a ação movida por Aila Maria de Jesus, que se recusou a abrir a bolsa num supermercado, depois de ter sido acusada injustamente de ter roubado um frango e um sabonete.
A trajetória da magistrada impressionou a jornalista paulista Lina de Albuquerque, autora do livro Recomeços, que reúne histórias de pessoas que foram capazes de reconstruir a vida diante de uma situação adversa. Depois de fazer um pequeno perfil da baiana para a publicação, Lina está escrevendo a biografia dela, que deve ser lançada até o final do ano.
Há ainda uma articulação para um documentário. “Vamos mostrar como é difícil ser negro na Bahia”, afirma Luislinda, que atuou durante seis anos em Curitiba e diz que lá foi mais bem-aceita.
Atualmente, ela está em licença- prêmio da função de titular do juizado da Faculdade Jorge Amado. E ainda hoje, conta se depara com situações como a da advogada que estava em sua cadeira e não acreditava que estava diante da juíza. “Tenho sempre que me impor”, reitera.
Entre os planos para o futuro está o de ser nomeada desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia. “Sou a sétima juíza mais antiga e tenho competência para isso”, provoca a filha de Iansã, que joga búzios, lê cartas e frequenta o terreiro Dembaukueman, da ialorixá mãe Bebé, no Buraco da Gia (Vasco da Gama).
Na época em que participou do Miss Mulata (1966)
 
Foto: Arquivo Pessoal 
“Adoro vermelho. É a cor da dona da minha cabeça”, diz Luislinda, referindo-se à orixá guerreira. A cor ela traz até nos cabelos. “Acompanho a evolução”, diverte-se a juíza, que já usou Black Power e concorreu a Miss Mulata em 1966. Ficou com o título de Simpatia.
FICHA
Livro O negro no século XXI
Autora Luislinda Dias de Valois Santos
Editora Juruá H Preço R$19,90 (83 páginas)
Lançamento Quarta, às 19h30, na Saraiva Megastore (Salvador Shopping)
Causos da afrobaianidade
A história sempre foi o terreno de Ubiratan Castro, mestre e doutor na matéria. Ex-presidente da Fundação Cultural Palmares e atual diretor da Fundação Pedro Calmon, ele atua com a preservação e divulgação da memória, sobretudo da negritude.
Em 2004, depois de uma viagem a Cabo Verde, na África, ele resolveu ampliar seu raio de atuação, investindo na ficção. Voltou pensando em colocar no papel histórias e causos ouvidos dos mais velhos que, fatalmente, tendiam a cair no esquecimento. “A grande riqueza do povo negro está na oralidade. Mas ela precisa ser passada para outros meios”, diz Ubiratan, 60 anos.
E completa: “Veja o candomblé. Hoje, os meninos não querem mais se formar alabês, eles querem é sair por aí tocando, aparecendo na mídia”, diz, referindo-se aos músicos-sacerdotes.
De sua parte, cutucou a memória e escreveu inicialmente algumas narrativas, reunidas no livro Sete histórias de negro, de 2006. Com mais cinco contos e novo projeto gráfico, de Nelson Araújo, o trabalho volta às prateleiras, rebatizado de Histórias de negro ( Edufba).
O lançamento será nesta segunda-feira (24), às 18h, na Academia de Letras da Bahia (Nazaré). Destaque para as ilustrações a partir de grafites de  rua de Denis Sena. “São histórias transmitidas no contexto de oralidade familiar”, define o autor, acrescentando que elas tratam do “ordinário, do quotidiano, de homens e mulheres comuns, negros todos”.
Falam de escravos, ex-escravos, pretos de ganhos ou seus descendentes, a sacolejar pelas feiras, ruas e becos de Salvador. Em Conta de somar, por exemplo, história que abre o livro, o autor refaz com humor uma das muitas estratégias dos negros urbanos para conseguir a sonhada alforria.
No caso, ludibriando intencionalmente o dono. Para o historiador João José Reis, que assina o prefácio, nos contos de Ubiratan “combinam-se o contador de histórias e o historiador”. Ele concorda.
Empolgado com a atividade, ele diz que lançará um livro histórico no ano que vem, mas, na sequências, voltará à ficção. Para isso, diz, vai à cata de novas lembranças e causos, com pessoas ligadas ao candomblé ou à Irmandade do Rosário dos Homens Preto, da qual faz parte.
“Cada negro letrado no Brasil tem a obrigação de sistematizar as suas próprias lembranças. A experiência de cada um é um trecho da realidade vivida”, considera Ubiratan Castro Araujo.

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