Angelo Leonardo Mondin
Orientadora: Profa. Dra. Rosana do C. Novaes Pinto
Letras - UNICAMP
Orientadora: Profa. Dra. Rosana do C. Novaes Pinto
Letras - UNICAMP
Introdução
Quando iniciei este trabalho, proposto na disciplina Gramática I, meu alvo era investigar algumas das concepções que os alunos de 8a série de uma escola pública tinham sobre língua portuguesa, ensino de gramática e literatura, o que fiz por meio da aplicação de um questionário. Entretanto, durante a leitura das respostas deparei-me com uma que mudou o rumo de minha reflexão: era uma resposta para a seguinte pergunta: “O que você acha da fala de pessoas que são mais pobres e/ou que não tem acesso ao ensino escolar?”. Ele escreveu: “bem analfabetizadas”.
Comparando a resposta citada com outras do mesmo aluno compreendi que ele queria dizer que o “analfabetizado” – i.e., analfabeto – possuía, no seu entender, uma fala “errada”. A mentalidade desse aluno, ou mito da linguagem, não é coisa nova, pois tem sido denunciado por lingüistas como Gnerre (1985): “[...] mítica porque assume que é a escrita, e em especial a escrita alfabética, que representa um avanço substancial numa perspectiva cultural e cognitiva” e que se verifica no mesmo aluno quando solicitada sua opinião a respeito da afirmação “A pessoa que sabe ler e escrever pensa melhor do que aquela que é analfabeta”. Tal como observara Gnerre, o aluno respondeu: “é uma frase bem correta”. Ainda quando se pede a ele o que pensa a respeito da afirmação “O certo é falar do jeito que o livro ensina”, para a qual ele responde: “verdade”.
O que se nota até aqui é que seria possível entrar na discussão da concepção dos alunos pela porta dos mitos sobre a linguagem, entretanto, diante da inquietação que senti perante a construção “bem analfabetizadas” passo a refletir sobre a relação entre ensino de gramática e “alfabetização” – ou analfabetização. Baseando-me nas questões levantadas por Cagliari em seu livro “Alfabetização & Lingüística (2003) [1] me perguntei se isso não seria um processo pelo qual a pessoa tem bloqueada sua capacidade de formular hipóteses quanto à construção de escritos alfabéticos, já que predomina uma conceituação de gramática a partir de uma perspectiva grafocêntrica extremamente prescritiva. Em outras palavras, pensei que isso poderia ser o resultado da migração de uma ou mais normas que são especificas da escrita para a fala e da fala para escrita, ou ainda de uma enorme e confusa lista de normas despejada sobre o usuário da escrita em fase de alfabetização e (teoricamente) letramento.
Alfabetização, Letramento e Ensino de Gramática
Um dos aspectos que pode confirmar essa hipótese é que, algumas vezes, na fase inicial de alfabetização, as crianças sentem-se desestimuladas a escrever, uma vez que privilegia-se a forma ortográfica (escrita cursiva) ao invés do estimulo à produção textual – que seria uma plataforma mais adequada para trabalhos posteriores que levassem em conta a ortografia e gramática. É o que tenta dizer Olson (1997: 29) quando afirma que “A função da escola não é deslocar as percepções e as crenças da criança pré-escolar, mas desdobrá-las e elaborá-las [...]”.
Infelizmente, a fala e outras modalidades comunicativas não são levadas em conta no contexto escolar de ensino da língua. Há uma ênfase tão exagerada na escrita que outras formas de expressão ficam a margem do preconceito. As entrevistas confirmaram esse fato, pois a grande maioria dos alunos classificou como diferente, irregular, feia e errada a fala de grupos ágrafos. Deslocamentos dessa ordem têm suas origens não só na hiper-valorização de uma modalidade em oposição à outra, mas principalmente na falta de explicitação de quais sejam os objetivos das disciplinas que trabalham com Língua Portuguesa nas escolas. Essa dificuldade de distinção entre as diversas modalidades e clareza de objetivos fica visível nas respostas vagas obtidas para a questão “Você considera língua portuguesa, gramática e literatura a mesma coisa ou não (explique o porquê)?”. Dos catorze alunos entrevistados, cinco disseram considerar gramática, literatura e língua portuguesa a mesma coisa, enquanto nove disseram considerá-las coisas diferentes, porém, apresentando as razões mais divergentes entre si (como, por exemplo, uns dizendo que são ensinadas separadamente e outros dizendo que são coisas distintas ensinadas, porém, como sendo uma única disciplina). Corrobora com isso Possenti (1996) quando fala a respeito da importância do profissional de línguas ter clara a diferença que há entre língua e gramática, para, nas práticas escolares evitar problemas como os de considerar que língua, gramática e literatura sejam a mesma coisa.
Problemas oriundos de hipóteses equivocadas como, por exemplo, a de que “É preciso saber gramática para falar e escrever bem” (Bagno, 2000:62) em que não há distinção entre aspectos que norteiam distintamente cada uma das modalidades em questão. Analogamente se trata do mesmo problema que verifiquei nos alunos que afirmaram que a gramática contribui para escrever bem, mas que, paradoxalmente, recebem aulas de gramática à oito anos e, mesmo assim, apresentam diversos tipos de problemas gramaticais em sua escrita (como hipercorreções, erros ortográficos, falta de coesão, etc). A esse respeito, acertada foi a afirmação de Perini (2003) quando disse jamais ter visto alguém conseguir “até hoje levar um aluno fraco em leitura ou redação a melhorar sensivelmente seu desempenho apenas por meio de instrução gramatical”. Voltemos ao problema da aquisição.
Se a aquisição da língua falada se dá pela exposição a ela, é evidente que para adquirir habilidades em outra modalidade que não seja a fala cumprirá, ao usuário da língua, uma exposição sistemática a modalidade em que deseja tornar-se proficiente. É neste sentido que a proficiência em leitura e escrita é tratada por Cagliari (2003) e Soares (2000) como mecanismo adquirido mediante o exercício do letramento, i.e.: um conjunto de práticas de leitura e escrita que sejam significativas para o usuário da língua e que, no caso da classe por mim entrevistada, deveriam contemplar seus interesses como trampolim para um contato mais significativos com a leitura e escritas cultas. Observando as respostas dos questionários percebi que os materiais utilizados como plataforma para o exercício da leitura e escrita na escola pesquisada são, respectivamente, aqueles que mais contribuem para produzir nos alunos uma grande aversão à língua. Passei, então, a questionar-me sobre de que modo essa aversão surgia, sobre se ela teria suas origens nos primeiros anos de ensino, durante o processo de alfabetização, ou se teria surgido anos mais tarde.
Não muito tempo depois tratei de consultar uma professora[2] do ciclo básico (1a à 4a série) municipal e conversamos sobre a metodologia de ensino da língua que ela utilizava e sobre como a criança assimilava as diferentes modalidades da língua através da formulação de hipóteses. Os pontos que destaco a partir de nossa conversa, os quais considero bastante interessantes e positivos, são os seguintes:
Ø De maneira implícita (para a criança) as atividades em classe objetivam levar a criança a perceber que existe uma outra modalidade da língua que pode ser usada (e que ela não é nem superior ou inferior à fala).
Ø As crianças percebem a existência de algumas diferenças entre as normas que regem a escrita e as que regem a fala. Elas passam a formular hipóteses a partir das normas que regem a modalidade da qual desejam fazer uso para se expressar.
Ø Os professores buscam evitar que a criança comece fazer migração de normas para modalidades para as quais não sejam adequadas (pois isso as levaria a começar a construir hipóteses equivocadas sobre o uso de cada modalidade).
Pensei que seria interessante também contactar os (as) professores (as) que alfabetizaram a turma que entrevistei, mas logo percebi que tal empreitada seria inviável, pela própria natureza deste trabalho, ainda em estágio inicial.Para compreender as respostas que obtive nos questionários aplicados aos alunos de 8ª Série, faço inicialmente duas hipóteses: ou os alunos não tiveram a mesma sorte em sua fase inicial de alfabetização – ou seja, não foram levados a refletir sobre as diferenças entre as modalidades, apontadas pela professora que entrevistei e que trabalhava com as crianças por meio de práticas significativas, ou então o tratamento dado a essas questões no início do ciclo básico foi modificado durante o percurso, principalmente na segunda fase do ensino fundamental, em que se dividem as aulas de língua em aulas de gramática, de literatura e de redação.
Conclusão
As entrevistas que fiz com os alunos[3] deixam claro que aquelas atividades que teriam que ter evoluído junto com os interesses dos alunos no decorrer dos primeiros anos foram lançadas para fora da escola (para onde também foi a atenção e o interesse dos alunos). Disso foi possível compreender outras respostas aos questionários que me parecem contraditórias. Por exemplo, ora os alunos afirmam gostar de ler, ora não. Mais tarde, lendo outras respostas é que fica claro que este “não gostar de ler” está atrelado e restrito ao livro didático e suas respectivas atividades. E como as leituras do livro didático são também utilizadas como plataforma para o ensino de gramática, os alunos acabam por desenvolver enorme aversão não só pela leitura e escrita, mas também pela gramática. Assim, parece-me que o uso do livro didático não tem alcançado o objetivo de fazer com que as crianças desenvolvam práticas letradas. Isso fica muito claro quando consideramos o conceito de letramento exposto por Magda Soares (2000:18 e 42):
“Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou condição que adquire um grupo social ou um individuo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. [...] Letramento é prazer, é lazer, é ler em diferentes lugares e sob diferentes condições [...] Letramento é informar-se através da leitura, é buscar noticias e lazer nos jornais, é interagir com a imprensa diária, fazer uso dela, selecionando o que desperta interesse, divertindo-se com as tiras de quadrinhos”.
O livro didático tem proporcionado ao aluno esse prazer pela leitura? Será que a escola pesquisada tem realmente se ocupado de atividades significativas como as descritas pela autora? Os inúmeros textos produzidos por educadores, as respostas que obtive em meus questionários e a discussão até aqui desenvolvida parecem responder enfaticamente que não.
O aluno começa a se sentir frustrado, começa a ter medo de escrever e, se escreve, busca subsídios na fala. Sem entender bem o porque dos erros, erra mais. Termina o ensino básico (e muitas vezes o médio) apresentando problemas de leitura, escrita e distinção de modalidades lingüísticas que deveriam ter sido sanados nos quatro primeiros anos do ensino fundamental e que, mais tarde, sob uma ininteligível hipótese, se tenta sanar através do ensino de gramática no ensino fundamental II e no ensino médio. A respeito dessa prática tão contraditória, afirma Perini (2003) que, na verdade,“[...] entre os pré-requisitos essenciais para o estudo da gramática estão, em primeiro, habilidade de leitura fluente e, depois um domínio razoável da língua padrão [...]. Assim, para estudar gramática é preciso saber ler bem – o que exclui usar gramática como um dos caminhos para a leitura”.
Prescrever regras da boa escrita, ou mesmo usar suas regras para definir o que seja o “bom falar”, tem sido a aparente missão do ensino língua nas salas de aula que tem buscado o ideal de formar na escola grandes escritores ao invés de, primeiramente, alunos letrados. Por ensino de língua, devemos ler - conforme equivocadamente fazem algumas escolas - ensino de gramática. Essa noção equivocada de ensino de gramática como meio para transformar alunos em grandes leitores e escritores é fundamentado pelo que Bagno chama de “comandos paragramaticais”, i.e., um grupo de pessoas responsáveis pela divulgação de “todo esse arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programas de rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, CD-ROMS, ‘consultórios gramaticais’ por telefone e por aí afora [...] tudo o que [...] fazem de concreto é perpetuar as velhas noções de que ‘brasileiro não sabe português’ e de que ‘português é muito difícil’” (2000:76-77).
Entretanto, os obstáculos responsáveis pela “analfabetização” não ficam restritos aos campos teóricos metodológicos e aqueles diretamente envolvidos neles (professores e alunos), antes, também percebi que muitas das dificuldades encontradas para o bom desempenho do ensino de língua são de outra ordem. Para ilustrar uma dessas muitas dificuldades, que muitas vezes não partem nem de professores, nem de alunos e nem de teorias e metodologias de língua e ensino, aproximadamente uma situação ocorrida enquanto eu aguardava para aplicar os questionários aos alunos. Nesse intervalo em que esperava a coordenadora para saber se ela permitiria que a aplicação do questionário de pesquisa, fui premiado com a seguinte conversa que agora exponho como dado relevante:
Professora: — Eu queria saber se poderia realizar uma atividade de leitura de jornal na classe. Recortaríamos os jornais e aí leríamos e comentaríamos as matérias.
Coordenadora: — Não. Ficaria muito suja a classe. Já temos a biblioteca e é lá o local de leitura.
Professora: — Nem no pátio?
Coordenadora: — Não.
Infelizmente concluo que o mundo real da escrita e da leitura, ainda, não é aquele abraçado pelos muros da escola (antes é outro mundo, velho, inútil e obsoleto). Na melhor das hipóteses, quando surgem raros professores engajados no exercício do ensino com práticas significativas de leitura e escrita, esses ainda trilham um caminho solitário, sem apoio institucional e mesmo de outros colegas da área. É triste, mas parece que ainda há um longo caminho a percorrer entre o que se espera do ensino de língua portuguesa nas escolas e aquilo que realmente se faz. Finalizo, entretanto, pontuando que apesar das negativas o extenso número de trabalhos sobre esse assunto, o surgimento de dificuldades enfrentadas pelos professores e mesmo a notória percepção dos obstáculos que tem surgido mostram que esse longo caminho já esta sendo trilhados por alguns profissionais e, cedo ou tarde, nós estudantes, docentes, alunos, e, porque não a sociedade como um todo, poderemos colher os resultados desse esforço por mudança, pois, creio eu, que o modo mais adequado de se encarar a presente situação seja o proposto pelo Salmo a seguir:
“Os que com lágrimas semeiam, com júbilo ceifarão. Quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo seus feixes”. (Salmo 126.5-6)
Que, em nome de JESUS CRISTO, DEUS nos abençoe e mãos à obra.
Referencia Bibliográficas
BÍBLIA SAGRADA. Traduzida por João Ferreira de Almeida. 2ª ed. São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BAGNO, Marcos. In: Preconceito Lingüístico, o que é, como se faz. São Paulo. Ed. Loyola (3a Edição): 2000.
CAGLIARI, Luis Carlos. (Pg. 124) In: Alfabetização & lingüística. Ed. Scipione.
GNERRE, Maurizzio. In: Linguagem, escrita e poder. São Paulo. Ed. Martins Fontes (1a Edição): 1985.
OLSON, David R. “A escrita sem mitos”. In: O mundo no papel. São Paulo. Ed. Ática: 1997.
PERINI, Mário A. “Introdução”. In: Gramática descritiva do português. São Paulo, Ed. Ática (3a Edição): 1998.
POSSENTI, Sírio. In: Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP. Mercado das Letras: 1996.
SOARES, Magda. In: Letramento, um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Ed. Autentica (2a Edição): 2000.
[1] Como forte preocupação com a aparência da escrita em oposição à proficiência, além de outras questões como: falta de práticas significativas, concepção de leitura que não se limite a decodificação, etc.
[2] Aqui expresso meu agradecimento à Professora Fabiana Solange Tauber de Andrade, por sua paciência e disposição em sanar minhas dúvidas acerca da alfabetização de crianças
[3] O que me possibilitou chegar à conclusão seguinte foram as respostas gerais às seguintes questões: Explique o que você mais faz nas atividades de classe (explique como você tem aula); Você gosta de ler (explique porque)?; O que você costuma ler? Quanto a primeira questão a maioria dos alunos dividiu-se em duas respostas: fazer cópias do livro e responder e a outra parcela nem soube dizer o que faz em classe. Quanto à segunda questão, a maioria respondeu que detesta ler e, finalmente, para a terceira, paradoxalmente a maioria respondeu ler histórias em quadrinho, jornais, revistas, suspense, etc. Seria isso uma contradição? Creio que não; acredito que se trate de um contraste entre aquilo que a escola e os alunos consideram significativo.
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