quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A necessidade de compreender a história da linguagem

Anelise Zanoni e Patricia Fachin
Ao analisarmos os históricos da língua portuguesa em diferentes contextos, percebemos que o idioma não é um conjunto “rígido e imutável de regras, mas uma somatória de sistemas linguísticos”, diz Luiz Carlos Cagliari
Primeiro, o país registrava um número crescente de escolas e alunos sem livros e professores sem material didático. Depois, com investimento alto, o governo passou a mudar o cenário da educação, mas faltou discutir a história da linguagem oral e os reflexos disso na escrita.
Com essa provocação, Luiz Carlos Cagliari, doutor em Linguística, reflete sobre importantes questões que envolvem o ensino e o aprendizado da língua portuguesa nas escolas. De acordo com o especialista, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line – Revista Institutos Humanistas Unisinos -  compreender a história da linguagem significa discutir a oralidade e a escrita.
“Ao fazer isto, constatamos, como sempre aconteceu na história de todos os povos e de todas as línguas, que uma língua não é um conjunto rígido e imutável de regras, mas uma somatória de sistemas linguísticos”, diz.
Com escolas tendo grandes contingentes de alunos provenientes de classes menos favorecidas, nas quais a linguagem oral apresenta diferenças notáveis com relação à variedade culta, o problema da variação na fala dos alunos ficou mais evidente e passou a exigir um tempo maior de aprendizado da norma culta, afirma o entrevistado. Para ele essa é uma das justificativas para a interpretação errônea de que a escola “afrouxou”, deixou de cuidar da norma culta.
Professor adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, em Araraquara, o linguista Luiz Carlos Cagliari é doutor pela Universidade de Edimburgo, na Escócia, e pós-doutor pelas universidades de Londres e Oxford. Ele é professor titular da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que avaliação o senhor faz do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2011 e dos livros distribuídos pelo MEC? Eles defendem o uso da linguagem oral sobre a linguagem escrita?
Luiz Carlos Cagliari - Duas questões na pergunta. A primeira questão: (PNLD), como muitas questões de política educacional e de pedagogia, é boa em tese. Seu real valor vai depender de como será tratada na prática. Pelo que eu saiba, há alguns problemas com relação ao PNLD, mas há também algumas vantagens. Com relação aos problemas, a questão mais séria diz respeito a quem faz esses livros didáticos, quem os publica e como são distribuídos. Em grande parte, predominam interesses e competências econômicas, ficando de lado competências técnicas e investimentos educacionais mais bem dirigidos pelo MEC. Quem tem mais e melhores conhecimentos científicos não costuma fazer livros didáticos. Por outro lado, os que o fazem nem sempre conseguem ter todas as informações necessárias para realizar a tarefa proposta. Pessoalmente, eu acho os livros didáticos do Brasil (todas as séries) muito ruins. Trazem informações pouco relevantes, informações erradas e, principalmente, não trazem muitas informações necessárias. Como essa questão é muito abrangente, não posso discutir detalhes aqui (veja, por exemplo, meu livro Alfabetizando sem o Ba Be Bi Bo Bu. São Paulo, Ed. Scipione, 1998).
Por outro lado, o PNLD despertou no governo a necessidade de financiar livros didáticos para as escolas públicas. Antes, havia uma situação muito estranha: escolas sem livros, alunos sem livros, professores sem material didático. Certamente, é um investimento muito alto, dado o grande número de escolas públicas do país. E o governo assumiu o encargo. Se os resultados ainda não são os melhores, diria que é um bom começo.
A segunda parte da pergunta (a predominância da oralidade sobre a escrita), certamente, traz um equívoco. O MEC nunca defendeu o uso da linguagem oral sobre a linguagem escrita. Aqui já chegamos à linguística. Por outro lado, mesmo antigamente, a linguagem oral nunca foi desprezada pela escola e sempre foi, aos poucos, dirigida para a variedade culta. Como havia muitas escolas com alunos oriundos de classes sociais mais privilegiadas, a fala dos alunos já estava mais próxima da variedade culta, facilitando a tarefa linguística escolar. Com escolas tendo grandes contingentes de alunos vindos de classes menos favorecidas, nas quais a linguagem oral apresenta diferenças notáveis com relação à variedade culta, o problema da variação na fala dos alunos ficou mais evidente e passou a exigir um tempo maior de aprendizado da norma culta. Isso foi interpretado erroneamente por muitos no sentido de que a escola afrouxou, deixou de cuidar da norma culta, que passou a usar qualquer variedade da língua em lugar da norma culta. Ignorância e preconceito.
Tanto a linguagem oral quanto a linguagem escrita tem suas variantes. Essas variantes servem tanto para definir uma norma culta (historicamente definida no tempo e no espaço), como para caracterizar todos os modos que a língua tem de falar e de escrever. Um literato é diferente de outro, não só no estilo de escrever, mas também no uso gramatical e lexical do que escreve. Alguns recheiam suas obras com termos e modos de falar que não pertencem à norma culta da linguagem escrita (cf. Guimarães Rosa ), mas revelam falares estigmatizados na sociedade culta urbana. Isso faz parte da trama da vida, da obra literária e dos usos que a linguagem permite ao usuário fazer nas mais diversas situações. Portanto, na escola, desde sempre, encontramos não apenas a norma culta, mas também outras manifestações da linguagem, tanto com relação à fala, quanto com relação à escrita. É uma questão de grau, de contexto e de uso.
As diretrizes do MEC têm sido cuidadosas no sentido de trazer para o discurso pedagógico as ciências humanas, não apenas as ciências exatas. É muito comum ver as pessoas fazendo afirmações a respeito da linguagem e da escola, como se fossem grandes entendidos, quando, de fato, apenas dizem opiniões sem fundamento, sem conhecimento da realidade, simplesmente pelo fato de acharem que o que pensam é o que o mundo é ou deva ser. Vivemos em uma época de ciência e de tecnologias, que exigem um grande comprometimento com a verdade, através de ações científicas controladas e precisas. (Nesta semana, vimos a mídia invadida por esse tipo de opinião de jornalistas conceituados, mas ignorantes com relação às ciências da linguagem – cf., por exemplo, o jornal Folha de São Paulo e outros).
O MEC não passou a defender a supremacia da fala sobre a escrita. Trata-se de uma interpretação equivocada, como mencionei acima. Porém, na escola, por razões óbvias de nossa cultura, ocorre uma porcentagem muito maior de atividades com a escrita do que com atividades orais. O pouco a mais de estudo da fala, que se conseguiu introduzir na escola, bastou para gerar um alvoroço sem sentido.
IHU On-Line - Quais os avanços e limites do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD 2011 como instrumento de apoio ao processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa? É possível falar em linguagem adequada e inadequada?
Luiz Carlos Cagliari - A política do PNLD tem de favorecer a melhoria do ensino. Infelizmente, ainda estamos longe disso. Mas, é um bom começo, como disse acima. Também vou voltar a falar sobre se há uma linguagem adequada ou não, logo adiante.

A linguística moderna não tem dúvida alguma de que haja linguagem adequada e inadequada, coisas certas e coisas erradas, coisas diferentes se contrapondo às noções de certo e de errado. Portanto, há várias questões em jogo. Qualquer falante nativo de qualquer língua aprende uma variedade de sua língua e fala corretamente essa variedade para expressar tudo o que quiser e para entender o que ouve. Em casos de dificuldades, todas as línguas têm expressões que permitem fazer perguntas e obter respostas para que a comunicação fique esclarecida. Portanto, todo falante nativo faz um uso adequado da sua língua. Além disso, ele tem consciência do que é aceitável e do que não o é, ou seja, do contraste entre o que é adequado e o que não é adequado. Se alguém falar propreluzilmente, o ouvinte desconfiará que se trata de um advérbio terminado em –mente, mas não reconhecerá o sentido da palavra porque ela não existe em português. Se alguém disser xícara para panela de pressão, embora o ouvinte reconheça as palavras, saberá que foram usadas erradamente, e assim por diante.

Quando a fala é típica de uma comunidade ou grupo social, a gramática desse uso lingüístico é reconhecida como adequada. Mas, se uma variedade estigmatizada pela sociedade for usada em um ambiente hostil a essa variedade, o uso daquela variedade nesse ambiente é inadequado. Uma pessoa que pretende ser gerente de uma grande firma, não poderá falar nóis compremu os café... não porque esse modo de falar tem uma gramática errada, mas porque o uso desse modelo naquele ambiente é inadequado e isso por razões sociais e não linguísticas. Considerações dessa natureza mostram a necessidade de se ensinar sociolinguística aos alunos como forma de conscientizá-los nos usos da linguagem e favorecer a promoção social de muitos com um uso adequado da linguagem.

IHU On-Line - Como fica o aprendizado da norma culta a partir dessa concepção de que é importante considerar a linguagem falada como correta? Em sua opinião, de que maneira os livros didáticos devem lidar/estudar/considerar a norma popular?
Luiz Carlos Cagliari - Volto a estranhar a formulação da pergunta. Ela pressupõe que somente a escrita é correta e que a fala é sempre errada. Vamos começar, de novo, considerando o que é certo, o que é errado e o que é diferente nos usos da linguagem. Se a linguagem é expressão da racionalidade, a qual nos distingue dos demais animais..., negar ao ser humano (seja ele quem for) o uso dessa racionalidade (sua linguagem) é negar a ele o caráter humano. O fato de alguém achar que um falante nativo de uma língua fala errado significa exatamente isto: tirar dele o uso da racionalidade. Deste princípio, surgem todas as formas de preconceito e de estigma linguísticos. Primeiro se nega o indivíduo, depois, procura-se uma razão para justificar essa negação. Aí, então, entra a questão do diferente. A sociedade acha que umas pessoas são melhores do que outras por causa de suas realizações culturais, artísticas, comerciais, industriais, econômicas, militares, bélicas, etc. Com essa justificativa, estendem a diferença para aspectos que não comportam tal comparação, como discriminar quem fala diferentemente deles. Já que são “mal sucedidos” (sic), devem ser também ignorantes, incompetentes, falantes sem juízo, sem correção, etc. Ninguém fala errado porque é pobre, ninguém fala certo porque é rico. Provavelmente, vão falar de modos diferentes. Se um dia o pobre ficar rico e este ficar pobre, os valores linguísticos da norma culta vão se inverter. Foi isso o que aconteceu na passagem do latim para as línguas românicas, incluindo o português. O povo pobre que falava o latim vulgar passou a dominar o Império Romano, o qual sumiu com sua antiga nobreza, e as novas gerações (e nações) assumiram uma variedade da língua do povo (latim vulgar), gerando as línguas românicas. Portanto, a norma culta do português, do francês, do italiano, do espanhol, etc. nada mais é do que uma fala que, um dia, foi estigmatizada pelos nobres romanos. Enquanto a língua falada se transformava, a língua escrita se mantinha: não fazia sentido escrever em latim vulgar (ou romanço), mas em latim clássico, mesmo que isso trouxesse dificuldades para muitas pessoas. Somente quando surgiram escritores famosos (Dante, Camões, etc.), usando aquelas línguas derivadas do latim com grande engenho e arte, deixou-se de escrever latim e passou-se a escrever nas línguas vernáculas. É muito curioso notar que até hoje ainda há gente que acha que se deve escrever à moda do latim, que sem o latim, não se aprende português direito... e por aí vai a ignorância e o preconceito.

Escola

A escola precisa discutir a história da língua também. Isso implica em discutir a linguagem oral e escrita que a língua teve e tem. Ao fazer isto, constatamos, como sempre aconteceu na história de todos os povos e de todas as línguas, que uma língua não é um conjunto rígido e imutável de regras, mas uma somatória de sistemas linguísticos. Cada um desses sistemas tem suas regras, porque não há nada em nenhuma variedade da língua que não seja dependente de regras (isto é, a gramática de cada dialeto ou variedade). Não existe apenas a gramática da norma culta (seja fala ou escrita). Quando comparamos línguas diferentes, percebemos que as construções gramaticais variam de modo próprio a cada língua. Se, em inglês, algum diz (ou escreve) thes goods boys works (?), fazendo com que todos os elementos mostrem uma “concordância gramatical”, o resultado será uma aberração, porque, em Inglês, as regras são diferentes: the good boys work. Em português, a regra é exatamente aquela rejeitada pela gramática da língua inglesa: os bons meninos trabalham. Os falantes de inglês, que dizem the good boys work são preguiçosos? São incapazes de fazer concordância? O que se espera dele? Espera-se que eles falem de acordo com a gramática de sua língua. Com relação ao português, alguém que diz os bom menino trabalha, fala assim porque segue a gramática de sua variedade de português: há regras muito precisas para essa construção gramatical. Para essa gramática, dizer os bons meninos trabalham ou o bom meninos trabalha está errado, é contra as regras de uso daquela variedade. Esses falantes não falam assim porque são burros ou preguiçosos. Nem os que falam os bons meninos trabalham revelam grau superior de inteligência, de dedicação e de atenção à gramática: eles falam assim, porque aprenderam e o esforço e a inteligência não têm nada a ver com a construção gramatical.
As considerações acima já deixam clara a resposta à segunda questão formulada: como “os livros didáticos devem lidar/estudar/considerar a norma popular?”. O exposto acima já caracterizou o certo, o errado, o diferente, a língua falada e a língua escrita. Falta, agora, falar de como esses conceitos e fatos entram na programação escolar ou nos livros didáticos. No currículo escolar, temos nove anos de ensino fundamental, três de ensino médio e três ou quatro de ensino superior (por exemplo, em Cursos de Letras) – uns 15 anos de estudo. Como dividir o conhecimento que a escola precisa passar aos alunos em 15 anos? Com relação à Língua Portuguesa, será somente gramática normativa e literatura (com conteúdo indefinido)? Quando vejo alguns tipos de comentários sobre linguagem, percebo que os 12 ou 15 anos não foram suficientes para que certas pessoas demonstrem que conhecem, de fato, como funciona a linguagem oral e a linguagem escrita. As ignorâncias e os preconceitos emergem com facilidade e em todos os lugares. Isso na mídia é uma praga. Para que isso não aconteça, seria preciso rever os conteúdos ensinados. Seria preciso que os professores de português fossem cientistas da linguagem, assim como um médico o é da medicina, um engenheiro elétrico o é da engenharia elétrica, etc. Se não fizermos assim, estaremos ainda na concepção de ciência da Antiguidade. Um químico não quer ser um alquimista, mas uma cientista. Um linguista não quer mais ser um gramático à moda antiga, mas um cientista da linguagem. Definido a partir da linguística moderna o conteúdo programático de ensino de português, em bases científicas, passa-se a ter o problema da implementação desse conteúdo. Aqui, a questão passa a ser pedagógica e não mais linguística.
Em 12 anos, dá perfeitamente para cobrir de modo adequado todas as áreas da linguística: fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, semântica (e suas variantes), pragmática, análise do discurso, psicolinguística, sociolinguística, etc. Além disto, conteúdos como: história das línguas, história do português, sistemas de escrita, ortografia (teoria e prática), línguas indígenas brasileiras, etc... também deveriam entrar na grade curricular. Onde está a “norma popular” e a norma culta? As variedades da língua e suas interpretações socioculturais e históricas estão em todos esses conteúdos. Então, temos que discutir como esses conteúdos se encaixam nas diferentes séries, por exemplo, no processo de alfabetização (ou ensino fundamental).

No início da alfabetização, salvo raríssimas exceções, o professor vai encontrar uma classe linguisticamente heterogênea, ou seja, com alunos que usam a língua portuguesa com diferenças entre eles. Não raramente, um alfabetizador precisará enfrentar classes que, mesmo não sendo tão heterogênea, reúnem alunos que falam variedades bem diferentes da norma culta. Em certas comunidades do interior paulista, por exemplo, dizem, nóis fumu comprá os livro i num incontremu. Em certas comunidades de Sergipe dizem o prefeitxu é muitxu doidju. Coisas semelhantes vamos encontrar pelo país afora. Hoje, o mais comum são classes “urbanas” de alunos que já aprenderam muita coisa da fala culta, por causa da pressão da sociedade urbana e por influência dos meios de comunicação (tv, etc.). Portanto, o problema tem graus diferentes de dificuldade para o professor levar todos os alunos a se tornarem usuários da norma culta. Ninguém aprende uma língua nova da noite para o dia, sobretudo, no ambiente escolar. Para quem não é falante da norma culta, chegar a ela é como aprender uma língua nova. Por outro lado, como o processo é demorado e a escola precisa fazer algumas coisas, como aprender a ler e a escrever, como instrumentos básicos para os estudos da linguagem e de outras matérias, o professor precisa necessariamente explicar aos alunos o que acontece na sociedade, quando algumas pessoas falam de um jeito e outras pessoas falam de outro jeito, assim como um país fala de um jeito e outros países falam de outros jeitos. Por essa razão, explicar a variação linguística é uma das primeiras atividades de um professor alfabetizador. Ao mostrar a variação, o professor mostra as diferenças. Diferenças não são erros, são apenas diferenças. Um erro linguístico, por exemplo, seria chamar o animal cachorro de estátua ou dizer murdilcopa para formiga, ou dizer o livros... nóis fumos, etc. São erros porque ninguém fala assim, em nenhuma variedade linguística da língua portuguesa. Explicando a variação, o professor pode contar a história da língua, deixando claro como a língua portuguesa evoluiu desde seu começo até hoje, passando por muitas transformações, por muitas normas cultas. Antigamente, se dizia a despois, hoje, preferimos dizer depois; antigamente se dizia vossa mercê, hoje, dizemos você, e tem gente que diz ocê e até cê. Antigamente, se falava diga-me seu nome, hoje, falamos me diga seu nome; antigamente, se dizia cadeira, ouro, rapaz, dia; hoje, dizemos cadera, oro, rapaiz, djia. Tiramos o I de algumas palavras e colocamos em outras... A mudança é fruto da diferenciação no uso da linguagem e não de qualquer déficit mental ou psicológico dos falantes. Por outro lado, algumas mudanças não incomodam, como falar djia ou dia, dizer cadera ou cadeira. Outras mudanças incomodam, não porque são erros linguísticos, mas porque quem usa essas variedades é visto pela sociedade como pessoa pobre, ignorante, sem cultura (tradicionalmente aceita pelos intelectuais), ocupando um lugar inferior nos níveis socioculturais da sociedade. O preconceito visa à pessoa em primeiro lugar e, depois, arranja motivos para se justificar.
Explicando coisas desse tipo, o professor pode deixar seus alunos alfabetizandos usar a linguagem que trazem de casa para a escola, escrever com “erros de ortografia”, ler em seus dialetos, como forma de respeito por eles. Ao mesmo tempo, vai conscientizando-os de que, vieram à escola para aprender o que não sabem, ou seja, a norma culta falada e escrita. Portanto, quanto antes aprenderem a falar a norma culta e a escrever com correção gramatical e ortográfica, melhor para todos. Compreendendo essas colocações, o professor e os alunos podem trabalhar tranquilamente, conscientemente dos objetivos e com rapidez. Por outro lado, sem essas explicações e atitudes, o ensino fica deformado, complicado, não progride e causa grandes frustrações nos alunos, nos professores, nos pais e até naquelas pessoas que nunca entenderam como devem ser as coisas.
Obviamente, a história da língua irá ser tratada em séries mais adiantadas, assim como outros conteúdos, incluindo aí uma discussão mais ampla da variação linguística, podendo mesmo se servir da grande história de nossa literatura para ver como a variação de fala e de escrita aparece nessas obras. Apesar de complexa, essa questão permite inúmeras atividades interessantes, cientificamente apoiadas, no ensino da língua. Além disso, permite discussões necessárias de respeito às pessoas, de combate ao preconceito, da necessidade de se levar mais ciência para a escola, deixando de lado superstições pedagógicas.
Não considero os PCNs uma boa solução, porque deixou de lado muita coisa que não podia. No entanto, no que trazem apoiados por alguns linguistas que o redigiram, o texto é bom. Os PCNs falam do estudo “da língua” e não apenas “da escrita” (nem exclusivamente da norma culta). Se a recomendação é estudar a “língua”, o estudo da variação linguística se encaixa aí necessariamente. Os estudos da variação alavancam os estudos das preferências linguísticas no tempo, no espaço e na sociedade. As preferências linguísticas vão em direção à norma culta falada e escrita, acrescida de um todo estilístico, exigido ou desejado de acordo com diferentes gêneros discursivos. Assim, selecionam-se e se expandem os usos da linguagem oral e escrita através das atividades escolares, graduando-as desde as primeiras séries até a pós-graduação.
A questão da inserção da variação linguística em livros didáticos, obviamente, deve prever um programa que abranja todas as séries, cada qual com seus conteúdos específicos e com a dosagem correta do que se ensina e do que se espera que os alunos assimilem. Como muitos autores de livros didáticos não têm uma boa formação linguística e vivem com seus equívocos e falta de conhecimento científico a respeito da linguagem oral e escrita, o que colocam em seus livros pode trazer mais dano do que benefício para os estudos da linguagem. A desculpa de que a linguística é muito difícil, confusa ou até mesmo irresponsável no ensino (porque equivocamente acham e dizem que para a linguística não existe erro de linguagem e que vale tudo...) traz de volta a velha discussão: vamos ensinar que é o Sol que gira ao redor da Terra, porque isso nos parece mais óbvio e cômodo, olhando o universo, ou vamos ensinar astronomia moderna? O ensino não precisa deturpar a verdade científica para facilitar a tarefa do professor, nem complicá-la excessivamente. Cabe ao professor, como profissional competente e bem preparado saber como ensinar coisas fáceis, difíceis, não óbvias, etc. Pode-se ensinar a estrutura atômica a uma criança, sem fórmulas e gráficos científicos, como fazem alguns museus de ciências pelo mundo, simplesmente, através de figuras, de documentários e de uma boa conversa, porque as crianças gostam de uma boa conversa na escola e fora dela.
IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que “a linguística moderna substituiu o antigo ensino da gramática normativa, não desprezando a norma culta, mas mostrando que as línguas evoluem e mudam com o tempo e geram diferentes normas ou variantes linguísticas”. O que isso significa em termos práticos em relação ao uso e escrita da língua portuguesa? Vai se admitir a pronúncia e a escrita de uma mesma palavra de formas diferentes?

Luiz Carlos Cagliari -
A resposta a essa questão já deve ter ficado clara nas explicações anteriores. Vamos pegar um exemplo: um texto do português medieval (arcaico), um texto de cada século, tirado de bons escritores e compará-los. O que aconteceu? Nossos escritores de hoje não escrevem com os escritores de séculos passados. Não podemos fazer o mesmo com gravações da língua (porque antigamente não havia gravadores de som, de vídeo), mas a julgar pela história, sabemos que a fala sofreu modificações no tempo e o que temos hoje são muitos pontos diferentes de chegada, vindos de “um mesmo ponto de partida”. Nem tudo que já foi considerado norma culta tem, hoje, o mesmo status. Não é porque os gramáticos de plantão, defensores da língua (quixotescamente, diga-se de passagem) querem segurar a língua como um monólito de museu, que o que, hoje, representa a norma culta permanecerá assim por toda a eternidade. O máximo que podemos ter é segmentar um tempo e um lugar da língua, descrevê-la em todos os seus aspectos e dizer para os livros de história da língua, como ela é ou foi nessas circunstâncias. Ninguém segura a evolução de uma língua, assim como ninguém segura a evolução (transformação) de uma sociedade. São fatos que estão fora do alcance dos indivíduos. Ao nascemos, mais do que nos apropriarmos de uma língua, é a língua que se apropria da gente, de acordo com nossa situação social, do nosso lugar no mundo, no nosso tempo.
A segunda parte da pergunta volta à questão didática. O que faz uma pessoa que aprendeu a falar o dialeto paulista e se muda para o Rio de Janeiro em definitivo, almejando arranjar emprego, se incluir na sociedade carioca? Aprende a falar como os cariocas, porque assim a vida lhe será mais fácil e agradável. Então, a escola vai ensinar os alunos a falar diferentes dialetos? Não, porque enquanto escola, não há essa necessidade, bastando chegar à variedade de prestígio do dialeto regional e à ortografia, oficialmente estabelecida. À medida que o aluno progride nos estudos, na escola, ele passa a usar apenas o dialeto de prestígio, a norma culta oral e escrita. Isso não o impede de usar sua variedade, diferente da norma culta escolar, em seu ambiente familiar e entre amigos, como uma forma de respeito pelas pessoas, para não ser o chato e o pedante intelectual do grupo. Isso não é tarefa da escola. A escola apenas explica esses fatos. A escola se esquece de coisas fundamentais, que estão na frente dos olhos, mas que não são percebidas. Por exemplo, hoje, ninguém lê Camões no dialeto de Camões, até porque não sabemos exatamente como ele falava. Quando lemos sozinhos, lemos no nosso dialeto. Eu leio no dialeto paulista, que é meu dialeto, não leio Jorge Amado no dialeto baiano, nem Erico Veríssimo no dialeto gaúcho. E me sinto muito feliz. Posso também ler esses autores, seguindo o modelo da norma culta falada no estado de São Paulo. Vou fazer assim, necessariamente, quando for ler em público. Portanto, os alunos acabam tendo dois modos bem diferentes de lidar com a pronúncia de sua língua: um, quando leem para si e outro, quando leem, por exemplo, como atividade escolar. A variação linguística está aí, aos olhos e aos ouvidos de todos...
A outra parte dessa questão tem a ver com a escrita. Certamente, a preocupação da pergunta revela um desconhecimento básico do que vem a ser a ortografia. Todos os sistemas de escrita do mundo só sobrevivem porque definem uma ortografia. Ao fazer isso, a ortografia define os valores fonéticos e semânticos. Para quem fala caza, incontremu, acharu, lâmpida, a letra A tem os sons de [a], [e], [u] e de [i]. Para quem fala rapais, caxa, a letra A tem o som de [ai] e as letras AI tem o som de [a]. Quem guia o valor das letras não é o princípio alfabético, segundo o qual uma letra representa um som e vice-versa, porque a ortografia mudou essa relação. Se a ortografia não fizesse isso, cada falante escreveria como fala e, na sociedade, uma palavra teria muitas formas de escrita. Para evitar isso, ou seja, para neutralizar a variação linguística da fala na escrita, a ortografia congelou a forma de escrita das palavras. Disso se conclui que a nossa escrita ortográfica não é fonética, não pretende ser. Como sistema de escrita, ela permite a leitura, deixando para o falante nativo a tarefa de interpretar os sons e os sentidos que as palavras têm e o significado geral e particular do enunciado. Escrever fora da ortografia é burrice e é desnecessário. Portanto, desde o começo, o professor vai escrever as palavras na forma ortográfica, porque ele sabe como se escreve ortograficamente. Os alunos, porque não sabem a ortografia, vão se arriscar, escrevendo segundo as hipóteses que formulam nas suas mentes de como aquilo que eles falam deve ser escrito. Se o aluno foi bem instruído nas questões de variação, saberá que, partindo de sua fala, terá algumas dicas de como se escrevem as palavras, mas não a forma ortográfica de modo automático. Se ele fala lâmpida, irá escrever lâmpada. Quando ele vir a palavra lâmpada escrita, saberá que a professora ensina a dizer lâmpada, mas no seu dialeto se diz lâmpida. Quando vir escrito dia irá ler djia com o mesmo raciocínio. Nem na palavra lâmpada, nem na palavra dia, nem em nenhuma outra palavra escrita ortograficamente está registrada diretamente a pronúncia. Em alguns casos, a pronúncia está mais próxima, em outros casos, mais distante.
IHU On-Line - Com a adesão das novas tecnologias, os estudantes costumam abreviar palavras e simplificar a escrita. O senhor acredita que a língua portuguesa poderá ser reestruturada em função do uso da internet, por exemplo?

Luiz Carlos Cagliari -
Alguns usuários da internet não escrevem as palavras seguindo rigidamente a ortografia da língua. Fazemos isso, não raramente, quando escrevemos notas para nós mesmos, sem a intenção de mostrar a outras pessoas. A internet tornou-se o lugar particular compartilhado pelo público, um lugar público de marcar individualidades, diferenças, estilos pessoais, idiossincrasias com relação aos costumes, em geral, incluindo a linguagem. O que se constata nessas escritas é o desejo de ser diferente, mas, no momento em que muitos escrevem “do mesmo jeito”, cria-se uma ortografia e o resultado é exatamente igual ao de qualquer ortografia. Há regras e limites: pode-se escrever “risadas” com rsrsrs, mas se alguém inventasse de escrever essa ideia com apapap, ninguém iria conseguir ler “risadas”. No primeiro caso, a nova escrita remete à velha forma “risadas”, mas o segundo caso é incompreensível. Então, temos outra coisa: a escrita da internet não pode fugir muito da ortografia tradicional da língua (ou das línguas). Na prática, funciona como uma “redução” ou “abreviatura”. Lemos rsrsrs como “risadas” do mesmo modo que lemos Av. como “Avenida”, etc.
Muito raramente, a forma escrita influencia a fala, mas a fala está sempre influenciando a escrita e esta precisa se fechar para não introduzir variação na forma escrita das palavras, o que em excesso seria catastrófico no uso social da escrita. Portanto, a escrita da internet dificilmente irá influenciar a linguagem oral. O uso da “ortografia da internet” é peculiar desse meio e, fora dele, seria desnecessário e estranho.
Por outro lado, a internet veio mostrar muitos problemas de variação linguística, não apenas em termos fonéticos e fonológicos, mas também morfológicos, sintáticos, semânticos e discursivos. A questão da variação escrita é, sem dúvida, a menor de todas essas. Através do uso da linguagem, de como se expressam, vemos na internet como as pessoas pensam, e isso é mais perigoso do que abrir a boca e falar ou fazer uma redação padronizada. É um prato feito para a semântica cognitiva e para a psicologia, em geral, ficando apenas na questão linguística e comportamental desse fato.
IHU On-Line - Como o PNLD tem abordado/considerado a contribuição da linguística brasileira ao longo das últimas décadas?
Luiz Carlos Cagliari - Como esclareci de início, não conheço bem o PNLD para responder a essa questão de modo como se esperaria de uma pessoa especialista no assunto. Vou apenas fazer um comentário. A educação no Brasil, como costumo dizer, é patética e é assim por vários motivos. Vou apenas dizer um deles: a partir da política equivocada de um ministro da educação que era economista e que somente sabia ver qualquer coisa em termos de estatística, o que era ruim ficou pior, o que era estranho ficou patético, na educação. Nunca, neste país, se estudou tanto em função apenas de provas, notas, avaliações e coisas semelhantes. Tudo gira em torno de avaliações federais, estaduais, municipais, de concursos, de vestibular, etc. (Não vou mencionar todos os nomes oficiais que temos.) Esse objetivo se justifica não pelo caráter científico que deveria ser o objetivo primeiro da educação, mas para permitir fazer estatísticas. Avaliações são sempre necessárias, mas as estatísticas nem sempre revelam toda a verdade e podem até mascarar e trazer conclusões equivocadas. No caso da avaliação da educação no Brasil, as estatísticas tornaram a avaliação equivocada e a educação patética. Bastar perguntar a um professor como anda sua classe, fulano ou sicrano que são seus alunos, e teremos uma resposta muito mais próxima da realidade, muito mais saudável, mais honesta, e verdadeira. Isso, porém, não dá estatística.
A supervalorização das provas, das notas, dos testes, enfim, de tudo o que é feito com o objetivo de gerar estatística ou classificação de seleção, tem levado os autores de livros didáticos e de projetos educacionais (livros didáticos mais abrangentes através de apostilas e de livros) a se orientarem para essa finalidade. Então, quando pego o material de projetos curriculares, de ensino e de aprendizagem, de orientação para o professor, o que encontro são conteúdos selecionados para esse fim e tratados de forma que o aluno aprenda a fazer testes e a passar nessas avaliações. A educação chegou ao ponto tão patético que um grupo de grandes recursos financeiros não se conformou de ter pegado o segundo melhor lugar no Enem e resolveu treinar um grupo selecionado de alunos para que eles consigam o primeiro lugar no Enem. E publicou isso em folha inteira de um grande jornal. Mais patético do que isto, impossível.
Com essa política e com esses objetivos, noto que muita informação importante que deveria aparecer nos currículos das escolas, em todas as sérias, ficou de fora, porque não pertence àquele “conjunto de pontos de caem em provas”. Por outro lado, como as perguntas oriundas desse conjunto são sempre as mesmas, depois de alguns anos, as perguntas se repetem em sua grande maioria, às vezes, disfarçadas na redação. Muitos autores já perceberam isso e transformaram o currículo ideal de uma disciplina em um rol de questões, tratadas de modo a treinar o aluno na resposta. Isso irá garantir a eles um resultado no mínimo satisfatório nessas avaliações oficiais. No melhor dos mundos, um professor mais responsável ensinará tais conteúdos, como assunto sério, como forma de educação e de erudição, eventualmente, com alguma informação complementar.
Retornando à pergunta: é ridículo o conteúdo de linguística que aparece nos livros didáticos, nos projetos de grandes e de pequenas empresas educacionais, nos documentos oficiais. Voltando à situação patética da educação, só mais um comentário, porque a realidade é por demais conhecida: um professor alfabetizador, que tem de trabalhar a todo instante com muitos problemas linguísticos, não é formado em cursos de Letras, com programas linguísticos, mas em faculdades de educação, onde raramente recebem uma formação linguística minimamente decente. Vocês, inconformados com a tradicional decepção no processo de alfabetização do país, estão reclamando de quê? Ser professor no Brasil não é nada fácil e ser professor alfabetizador é um milagre.

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