sábado, 1 de fevereiro de 2014

ALFABETISMO FUNCIONAL, LINGUAGEM E INCLUSÃO SOCIAL

Lucinéia Silveira Toledo[1]
Resumo

Este texto traz reflexões sobre o problema do analfabetismo funcional no Brasil e sua estreita relação com a exclusão social. Embora a escola brasileira tenha cumprido seu papel de garantir o acesso universal às nossas crianças e jovens, sua permanência é um desafio e o fracasso escolar é uma triste realidade. O número assustador de jovens analfabetos e analfabetos funcionais, ou seja, jovens que não conseguem ler e interpretar adequadamente nem os mais simples textos, demonstra que muito se tem a fazer para que o Brasil possa superar as desigualdades sociais através de investimento em políticas públicas de educação de qualidade, saúde e assistência social.

Palavras-chave: alfabetismo funcional – letramento – inclusão social – linguagem – texto

INTRODUÇÃO 

A escola moderna foi pensada como um sistema universalizado de educação, criada sob os pressupostos da Modernidade e amparada na ideia de que o progresso é possível e a educação é um meio para alcançá-lo. O ideal formativo clássico, influenciado pela filosofia iluminista, afirma que o saber nos potencializa, libera e nos faz melhores e que o acesso à cultura e à escola democratizada para todos é o caminho para a supressão das desigualdades sociais, ao mesmo passo em que promove o acesso aos valores universais.(1)
No entanto, passado mais de um século, alguns desses ideais estão ainda fora de alcance. O acesso universal à educação é algo distante da realidade em vários cantos do planeta, e onde foi cumprido, há muitas deficiências, visto que a escola está longe de ser uma instituição que ajuda a superar as desigualdades e garantir aos indivíduos o acesso à cultura, ao conhecimento e aos valores universais.
Essa é uma das grandes contradições vividas na educação atual: ainda que todos concordem que o processo de escolarização é a base para uma sociedade mais culta,(2) o acesso massivo à escola não conseguiu suprimir o grave problema do fracasso escolar. Sendo assim, hoje nos deparamos com um grande contingente de analfabetos e analfabetos funcionais que freqüentaram anos de educação escolarizada. Essa situação só tem se agravado no mundo pós-moderno, no qual o papel do Estado de propor e regular as políticas públicas se debilita a partir dos interesses do mercado e de sua aspiração neoliberal. Esse mercado, que diminuiu significativamente a intervenção do Estado, transformou-o em um “Estado mínimo”. Reivindica-se que o Estado garanta o direito à educação, porém, sem a devida regulamentação desse processo, instituindo-se uma falsa ideia de “autonomia” das instituições escolares, dos professores e da comunidade na gestão de sua proposta educativa.
Nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como os latino-americanos, em que os problemas da miséria, da desigualdade social e da precariedade nas políticas sociais já eram enormes, os acordos neoliberais só aprofundaram e agravaram tais problemas. (3)
Foi o que aconteceu no Brasil, em que o cenário marcado pelos acordos do Governo Federal com o mercado neoliberal também marcam as mudanças trazidas pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/EN), de 1995/1996. Num contexto de intensas lutas pela redemocratização do país, após muitos anos de ditadura militar, a educação pública deixou milhares de escolas municipais, estaduais e federais sucateadas, com níveis alarmantes de analfabetismo e extrema desvalorização dos professores, os quais já traziam um baixo nível de formação inicial. Ou seja, as transformações de que tanto necessitava o país acabaram por serem freadas pelos acordos neoliberais entre governo e mercado nos anos 90 e, entre os investimentos vetados, estava a verba para a educação de jovens e adultos e a educação infantil.
Esse assunto adquire crescente relevância no Brasil, uma vez que a tendência à universalização do acesso das crianças à escola leva à concreta redução do número de analfabetos absolutos. Por outro lado, nos anos 2000, várias iniciativas em diferentes instâncias de Governo passaram a estimular a permanência dos alunos na escola, tentando combater a evasão. A educação infantil e a educação de jovens e adultos passam a integrar os investimentos do FUNDEB.(4) Houve também a criação de programas governamentais – como o Brasil Alfabetizado (5) - que tentaram promover o retorno às salas de aula dos jovens e adultos. Isso foi feito no sentido de se corrigir o problema da falta de investimento da década anterior e da exclusão educacional de milhões de cidadãos que já ultrapassaram a idade da escolarização regular e não concluíram a educação básica.
Mas aí é que se mostra uma importante contradição: se, por um lado, esses investimentos e iniciativas podem contribuir para que o nível de escolaridade da população avance, (6)por outro lado, a questão que se põe atualmente é se o acesso e a freqüência à escola são suficientes para garantir a aquisição de habilidades necessárias à vida pessoal e profissional - tais como as habilidades comunicativas relacionadas ao letramento - e a seu desenvolvimento como cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.

ALFABETISMO FUNCIONAL: DA DECODIFICAÇÃO DE LETRAS À DECODIFICAÇÃO DE TEXTOS 

A definição de alfabetismo vem sofrendo significativas mudanças nas últimas décadas. Se em 1958 uma pessoa era considerada alfabetizada quando conseguia ler ou escrever uma frase simples, hoje, com o avanço das tecnologias de comunicação, a modernização das sociedades e o aumento da participação social e política, essas habilidades não são mais suficientes. A Unesco define que uma pessoa alfabetizada é aquela capaz de ler e escrever em diferentes contextos e demandas sociais e de utilizar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida, dentro e fora da instituição escolar. Para essa nova maneira de conceber a alfabetização, a UNESCO sugere a adoção do conceito de Alfabetismo Funcional, (7) o qual indica que, além de possuir as habilidades de leitura e escrita, a pessoa deve saber utilizá-las, processando diferentes textos em diferentes contextos e situações comunicativas.
A maneira de conceber o próprio processo de aprendizagem da leitura e da escrita tem se modificado nos últimos anos e convivemos, hoje, com diferentes verbetes para explicá-lo. Paulo Freire, por exemplo, compreendia o termo alfabetização de maneira ampla e complexa, entendendo-a como exercício de cidadania:
Alfabetização é mais do que o simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de escrever e de ler. Implica não uma memorização visual e mecânica de sentenças, de palavras, de sílabas desgarradas de um universo existencial – coisas mortas ou semimortas – mas uma atitude de criação e recriação. Implica uma autoformação de que possa resultar uma postura interferente do homem sobre seu contexto. (8)
Esse grande educador, desde o século passado, já pensava em uma educação que “levasse o homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço”, a qual seria a educação do “eu me maravilho” e não do “eu fabrico”.(9) Ele criticava sempre o que chamava de “palavra oca” ou “verbosidade” na educação, e propunha que o grande desafio a ser enfrentado no Brasil era a superação do analfabetismo e, mais ainda, a superação da alfabetização puramente mecânica.
Pode-se inferir, a partir dessa citação, que a maneira como o autor concebe o processo de alfabetização é muito semelhante àquela proposta pela UNESCO, no conceito de alfabetismo funcional. E ele vai um pouco além, quando diz que esse problema estava intrinsecamente relacionado ao processo democrático, ao acesso ao conhecimento para atuar criticamente no mundo social e político.
Atualmente, alguns estudiosos, como Magda Soares, utilizam dois conceitos complementares e indissociáveis, para explicar esse mesmo processo: alfabetização e letramento. O conceito de letramento tem um sentido bem próximo ao do alfabetismo funcional, ou seja, ambos indicam um indivíduo que sabe fazer uso do texto escrito em diferentes funções e contextos sociais. No meio educacional, esse termo é mais freqüentemente utilizado e corresponde ao literacy, do inglês, ou ao littératie, do francês, ou ainda ao literacia, em Portugal; (10) ao passo que o conceito de alfabetização é mais utilizado para explicar o processo inicial de aquisição da base alfabética, do sistema de escrita, ou a construção de habilidades básicas para ler e escrever.
A nosso ver, Magda Soares compreende as práticas de letramento de maneira muito semelhante ao processo de alfabetização concebido por Paulo Freire. Para ela, essas práticas dependem muito da aprendizagem da escrita que, por sua vez, não se restringe à dimensão técnica adquirida no processo de alfabetização, ou seja, não se resume às habilidades de codificação e decodificação. Se letramento é “estado” ou “condição” de quem sabe ler e escrever, está implícita nessa concepção “a idéia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüísticas” tanto para o grupo social, quanto para o indivíduo que aprende a usá-la.(11)
O INAF/Brasil (12) contribui com esses estudos quando propõe diferentes níveis de Alfabetismo Funcional, com importantes análises sobre os mesmos. Definem-se então os quatro níveis de alfabetismo, medidos por meio de testes que mensuram habilidades de leitura, escrita e matemática:
• Analfabetismo 
Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases, ainda que uma parcela deles consiga ler números familiares (números de telefone, preços etc.).
• Alfabetismo de nível rudimentar 
Corresponde à capacidade de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares (como um anúncio ou pequena carta), ler e escrever números usuais e realizar operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita métrica.
• Alfabetismo de nível básico 
As pessoas classificadas nesse nível podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas, pois já leem e compreendem textos de média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário realizar pequenas inferências, lêem números na casa dos milhões, resolvem problemas envolvendo uma sequência simples de operações e têm noção de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitações quando as operações requeridas envolvem maior número de elementos, etapas ou relações.
• Alfabetismo de nível pleno 
Classificadas nesse nível estão as pessoas cujas habilidades não mais impõem restrições para compreender e interpretar elementos usuais da sociedade letrada: leem textos mais longos, relacionando suas partes, comparam e interpretam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos. (13)
Com base no proposto acima, pode-se afirmar que o alfabetismo de nível pleno deveria ser a meta da educação básica, já que os pesquisadores do próprio INAF consideram que somente ele é considerado satisfatório, pois permite que a pessoa possa utilizar com autonomia a leitura como meio de informação e aprendizagem, tornando-se um sujeito independente dentro da sociedade e de qualquer grupo, possuidor de meios suficientes para argumentar, questionar, reivindicar e até mesmo para se informar sobre determinado assunto.
Porém, o que mostram as pesquisas realizadas pelo INAF, somadas às avaliações institucionais como a Prova Brasil proposta pelo SAEB,(14) e comparadas internacionalmente a avaliações como as provas do PISA,(15) são resultados muito preocupantes, uma vez que, em todas elas, o país apresenta baixos índices de alfabetismo funcional (ou de letramento), além de conviver com um alto índice de analfabetismo relativo à população de jovens e adultos. Tudo isso acontece em um país que já conseguiu garantir o acesso à escola de mais de 97% de sua população infantil.

ANALFABETISMO FUNCIONAL: A EXCLUSÃO PELOS TEXTOS 
Não é difícil nos depararmos com pessoas que, mesmo sendo "alfabetizadas", não conseguem compreender mensagens simples, como uma carta, um aviso, um anúncio de jornal; ou ainda, com universitários de variadas áreas humanas e exatas, que sentem dificuldade ao interpretar textos ou enunciados de questões em provas ou concursos, o que os leva a obterem resultados bem abaixo do desejado.
Essas dificuldades presentes dentro e fora das salas de aula estão relacionadas à questão do letramento ou do alfabetismo funcional que, como vimos, refere-se às habilidades de leitura e escrita de textos em diferentes gêneros e funções sociais. Ou seja, a criança e o adolescente aprendem as letras, as sílabas e as palavras no processo inicial de alfabetização, mas não conseguem aprender a fazer um uso da palavra escrita de maneira significativa e criativa, como vimos na concepção de Paulo Freire. Isso nos leva a questionar o processo de escolarização e sua função, que éalfabetizar e letrar.
De acordo com Ribeiro, (16)os dados sobre o alfabetismo funcional confirmam que a educação básica é o pilar fundamental para promover a leitura, o acesso à informação, à cultura e à aprendizagem. O tempo de permanência na escola é um dos fatores favoráveis à elevação dos índices de alfabetismo funcional (ou letramento), ainda que, por si só, não o garanta. Nos países desenvolvidos, toma-se como patamar mínimo oito ou nove anos de escolaridade para se atingir bons níveis de alfabetismo funcional. Porém, nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, a média de escolaridade é de quatro séries. No entanto, de acordo com os estudos do INAF, (17) há um número significativo de analfabetos e analfabetos funcionais que cursaram algumas séries do ensino fundamental. Entre os analfabetos, 4% têm alguma escolaridade. E entre os analfabetos funcionais (alfabetizados de nível rudimentar) há um número significativo de jovens que cursaram da 5ª à 8ª série (26%). E há um número também muito significativo de jovens e adultos com nível básico de alfabetismo funcional entre os estudantes de ensino médio (45%) e superior (24%).
Podemos comparar esses dados divulgados pelo INAF/2007 com os índices atuais do IBGE, (18) que mostram uma taxa de analfabetismo funcional, representada pela proporção de pessoas de 15 anos ou mais, com menos de quatro anos de estudos completos, estimada em 21% em 2008, contra 21,8% em 2007. Segundo o IBGE, no ano passado, ainda havia 30 milhões de analfabetos funcionais no Brasil.
Esses dados não são muito diferentes dos mostrados pelo INAF, que considera não como "analfabetos funcionais" não só os jovens com quatro anos ou menos de escolaridade, mas também os jovens e adultos que freqüentaram vários anos de escolarização. Segundo o INAF, os analfabetos e os analfabetos funcionais representam 37% da população brasileira, sem se considerar os alfabetizados de nível básico (que também somam 37%). Os dados são ainda mais assustadores quando se descobre que somente 26% da população de 15 a 65 anos atingiram o alfabetismo de nível pleno. Ou seja, somente um terço dos jovens e adultos brasileiros apresenta capacidade de ler e compreender textos, fazer inferências e relações entre eles e os fatos da realidade em diferentes situações comunicativas, conforme apresentado neste artigo.
A questão da escolaridade média do brasileiro também é um problema a ser enfrentado. Considerando-se que as pessoas de 25 anos ou mais deveriam ter no mínimo 11 anos de estudos (até o ensino médio completo), muitos brasileiros sequer concluíram o ensino fundamental, já que a média é de apenas 6,7 anos de estudos. Entre os pardos e os negros, esse número cai ainda mais: em média, eles estudam 2,1 anos a menos que os brancos. Isso demonstra também a forte desigualdade racial e social ainda presente em nosso país. Essa desigualdade racial, econômica e educacional, por sua vez, alimenta outro grande problema do Brasil: a violência.
O filme Notícias de uma guerra particular(19) traduz esses números de maneira inquestionável: ao perguntar a jovens membros do tráfico de drogas o porquê de sua opção pelo crime, os entrevistados dizem não querer repetir a vida de seus pais e avós, que trabalharam como escravos para ganhar salários miseráveis.(20) Isso pode ser verificado em outras produções sobre questões parecidas, como em Falcão, meninos do tráfico,(21)e livros como Cabeça de porco, (22) no qual há um triste relato intitulado “Conspiração contra a mudança”,(23) que conta como o cineasta João Salles, autor do documentário citado, tenta ajudar um presidiário e traficante de drogas, apresentando-lhe a leitura como saída. Na medida em que ele passa a ler cada vez mais os clássicos da literatura brasileira, também passa a escrever sua própria história. Passa a ser autor. Escreve e lança um livro sobre sua vida. E na mesma medida passa a incomodar tanto o sistema que o aprisionou quanto os próprios companheiros de presídio. Isso vai lhe custar a vida.(24)
As notícias diárias sobre a violência nas favelas do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, São Paulo e outras grandes cidades são repletas de histórias em que, sem opção razoável de vida, sem ofertas e investimentos do Estado em políticas públicas de educação e cultura, nossas crianças e jovens morrem e matam em um mundo no qual ganhar dinheiro “fácil” é a única alternativa de futuro, para se sentirem incluídos. Voltando aos índices, somado ao problema do analfabetismo funcional, convivemos ainda com uma alta taxa de analfabetismo completo no país, a qual permaneceu praticamente inalterada em 2008, relativamente ao ano anterior. Os números mostram que tínhamos cerca de 14,2 milhões de analfabetos com mais de 15 anos de idade no Brasil em 2008, o que representa 10% da população nessa faixa etária. Em 2007, a taxa foi de 10,1%. A pesquisa do IBGE também apresenta muita disparidade entre as regiões brasileiras, sendo a região Nordeste a que tem índices mais preocupantes tanto de analfabetismo completo, quanto de analfabetismo funcional. Segundo Ioschpe,(25) o problema da desigualdade na renda brasileira tem como causa principal a desigualdade educacional. Num país em que os investimentos em educação são desiguais, onde as escolas das regiões Norte e Nordeste são ainda mais precárias que no restante do país, onde os professores são ainda mais desvalorizados, tanto do ponto de vista de salários, quanto do ponto de vista de investimentos em sua formação, o que mais fica evidente é a negação do direito da população a uma educação de qualidade; a negação do direito de aprender a ler e escrever com competência e, a partir daí, conseguir uma melhoria em sua condição social, em termos de emprego e renda. Muitos estudos indicam que os investimentos em educação trazem impactos significativos sobre a redução da criminalidade, além de contribuir para a inclusão social e cultural.
Mas o que todos esses dados indicam é que, ainda que tenha havido avanços no sentido da garantia do acesso universalizado à escola pelo menos até o ensino fundamental, hoje convivemos com outro tipo de exclusão: a exclusão dentro da escola. A exclusão pelas letras não aprendidas adequadamente. A exclusão pelos textos não processados de maneira competente. A exclusão pela falta de ofertas de equipamentos públicos que desenvolvam o gosto pela leitura e pelas práticas culturais em que a linguagem escrita faça sentido. A exclusão pela precariedade da formação dos educadores e por sua desvalorização. Essa é uma dura realidade que ainda não tem sido enfrentada seriamente nas diferentes instâncias e esferas do Estado.
Hoje, a maioria dos professores também trabalha arduamente para ganhar baixos salários, sem haver um mínimo de acompanhamento ou preocupação com sua capacitação didático-metodológica por parte de gestores e/ou técnicos competentes. Esses fatos também podem ser comprovados em outros filmes e documentários, como é o caso de Pro dia nascer feliz,(26) que mostra a realidade educacional brasileira em diferentes Estados, nos quais professores e alunos convivem com profundas desigualdades e as mais diferentes formas de violência, que passam pela discriminação e também envolvem uma completa indiferença por parte do Estado e da sociedade civil.
Ioschpe diz que é impossível a um país desenvolver-se no século 21 quando sua população ainda não resolveu problemas do século 19. (27) Essa afirmativa é facilmente comprovada, quando lemos Paulo Freire e percebemos que ainda neste século, tal qual no passado, ainda não conseguimos ensinar as crianças e os jovens a ler e escrever adequadamente. Isso revela a má qualidade de nosso sistema. O pesquisador do INAF, referindo-se ao desenvolvimento econômico, diz que hoje o patrimônio mais valioso de um país não está em sua terra, seu clima e seus recursos naturais ou minerais. Hoje, o progresso de uma nação está cada vez mais relacionado aos recursos humanos, e mais propriamente à inteligência humana, à construção de conhecimentos na geração de bens de alto valor agregado e no desenvolvimento de novas tecnologias. E essa riqueza só é possível com o acesso democrático ao conhecimento nos mais diferentes níveis de ensino. E, infelizmente, nosso país está longe de oferecer um tipo de educação que favoreça o desenvolvimento desse tipo de capital humano aos brasileiros.

EDUCAÇÃO E LINGUAGEM 
Não é possível tratar de alfabetização, letramento e alfabetismo funcional sem pensar no papel da escola e no tratamento dado por ela à linguagem ou às linguagens de uma maneira geral. A falta de investimentos na educação e na formação e valorização dos docentes contribuem enormemente para que a escola brasileira apresente importantes contradições no que diz respeito ao processo de ensino e aprendizagem, não só da leitura e da escrita, mas também do tratamento dado a elas nas diferentes disciplinas. Antes de ser um lugar de produção cultural, exercício do pensamento e reflexão possibilitado pela linguagem, as instituições escolares muitas vezes têm se constituído como um espaço de alienação, limitação da capacidade de raciocínio e de reflexão: nesse espaço, desenvolve-se a mera reprodução e pouca criação. Os conteúdos ainda são trabalhados de maneira fragmentada e a alfabetização e o letramento não são tomados como processo contínuo e como tarefa coletiva da escola.
Se, como nos diz Smolka,(28) “a linguagem é uma atividade criadora e constitutiva do conhecimento e, por isso mesmo, transformadora”; se ela é o centro de qualquer atividade educativa, de qualquer área de conhecimento e se qualquer aprendizagem passa por ela, é necessário conhecer bem esse sistema, como ele se desenvolve no ser humano e as diferentes metodologias de trabalho que favoreçam seu desenvolvimento. Para resolver problemas, memorizar, fazer comparações, escolher, utilizamos não só a língua verbal (falada e escrita), como também a gestual, a artística, a matemática. Por isso, é necessário um tratamento das linguagens de maneira integrada e articulada entre as diferentes áreas de conhecimento.
Na escola, a formação de conceitos e o desenvolvimento do raciocínio lógico estão estritamente vinculados a essas linguagens, cujo eixo central é a escrita. As tarefas intelectuais básicas e indispensáveis, envolvidas na formação de conceitos, tais como a atenção, a formação da imagem e a inferência se tornam insuficientes, sem o uso da palavra como um meio pelo qual conduzimos nossas operações mentais ou canalizamos e controlamos seu curso para resolver um problema. (29)
A partir dos estudos de Vygotsky, sabe-se que, especialmente na escola, as palavras funcionam como meio de comunicação, de organização de ações e interações para adquirir novos conhecimentos. Da mesma maneira, a própria linguagem passa a ser um importante objeto de estudo. (30)
Sabemos que qualquer conhecimento formal ou cotidiano só se torna possível por meio da linguagem. Lígia Leite(31) mostra que a linguagem (principalmente, a oral e a escrita) e o saber devem constituir o centro de nossas preocupações pedagógicas, entendidas como práticas de “um sujeito agindo sobre o mundo, para transformá-lo”.
Essa idéia coincide com a de Lima, (32) que vê a linguagem como possibilidade de produção de sentido, por meio do exercício da função simbólica que, por sua vez, é possibilitada pela vivência cultural, pelas diferentes formas de interação humana e pelo exercício dos cinco sentidos e do movimento. Para se comunicar, o ser humano utiliza diversas linguagens. A autora defende que, por sermos seres culturais, o processo de aprendizagem da leitura e da escrita deveria ter como apoio as diversas experiências culturais do educando: “relacionar o ensino da escrita às vivências culturais adquire uma importante dimensão quando pensamos na escrita como produto da cultura humana.”(33)

Mestre em Educação pela Universidade de Matanzas em Cuba, com enfoque na formação de professores para o uso de diferentes linguagens e textos no desenvolvimento da competência comunicativa. Professora da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, trabalha atualmente na Gerência de Política Pedagógica e de Formação - Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Coordenadora do Projeto de Capacitação de Educadores da Associação Tela e texto.

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