sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Chamado de Deus


ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ[1]

É impressionante como as tragédias provocam destemperos verbais. A tragédia de Santa Maria/RS que o diga.
Por ora, 239 pessoas – a maioria universitários – morreram por conta de uma noite que deveria ser só de balada, ainda que fosse embalada por uma “Gurizada Fandangueira”.

Aliás, essa banda deveria servir como uma sinédoque (ou seja, a parte pelo todo) para incorporar o que há de pior de entretenimento também entre a juventude universitária.

Nunca nosso estudante se contentou com tão pouco em termos de qualidade. A miséria cultural, que impera entre nossos jovens, esparrama-se país afora por meio dos tais forrós, pagodões, sertanejos, funks, fandangos... tidos como “universitários”.
Há algum tempo venho dizendo que, a partir do momento que a palavra “universitário”, no meio do entretenimento, passou a ser um adjetivo, a qualidade do “universitário” – como substantivo – foi ficando menor. Com exceções, o universitário de hoje é isso aí... Os “biscoitos finos” estão só que rareiam!
Feito esse preâmbulo, aponto que o germe deste artigo nasceu do pronunciamento do Senador Paulo Paim (PT/RS), ocorrido em 05/02, sobre aquela tragédia.
Estando no trânsito, ouvi – pela Rádio Senado: FM 102.5 – o referido discurso. Incrédulo, fui conferir aquilo na íntegra: http://www.ptnosenado.org.br/paulo-paim/pronunciamentos/25582-paim-se-emociona-ao-homenagear-vitimas-de-Santa-maria.

Mas, afinal, o que disse Paim, tendo sido acompanhado por alguns apartes, como os de C. Maldaner, W. Moka, Blairo Maggi e Sérgio Souza?
Além de obviedades, no epílogo, veio a seguinte pérola: “(...) A única certeza que tenho é a de que esses jovens estão num outro plano, no plano espiritual, em nova fase de evolução. Eles cumpriram uma missão na Terra. O dia e a hora estavam marcados, e eles foram chamados. Voaram como pássaros, batendo asas, não como um ‘adeus’, mas como um ‘até mais’ a todos nós, porque um dia todos nós vamos com eles nos encontrar”.
Paim relatou ainda o teor de uma “mensagem espiritual, recebida no Instituto Bezerra de Menezes”. Não vou transcrevê-la.
Resumindo: Paim acredita que aqueles jovens foram coletivamente “chamados por Deus” porque tinham “dia e hora marcados”. Por isso, “bateram asas e voaram...” Simples assim!
Incrédulo com sou, se me contassem que um senador dissera isso, eu não acreditaria. Como cidadão, não admito que um representante do povo, mesmo emocionado, jogue para outro plano – que não seja o terrestre – responsabilidades humanamente concretas.

Aceitar tal discurso é relevar a gravidade de todos os nossos problemas sociais, que não são poucos. É deixar as leis para segundo plano. É relaxar a imposição das penas. É enfraquecer o trabalho de prevenção e fiscalização no país. É desconsiderar nossa miséria cultural...
Se Saramago estivesse vivo, e se se pronunciasse sobre o discurso de Paim, certamente diria que é crer na perversidade de Deus contra aqueles jovens brutalmente assassinados, contra seus familiares, seus amigos, seus professores...
O discurso apelativo e medieval de Paim não contribui para qualquer reflexão séria. Por isso, seria de bom tom se aquele petista pedisse desculpas à nação pelas metáforas descabidas.
Com todo respeito, mas se algum espiritualista compactuar com o discurso de Paim, que pelo menos os ateus – cidadãos que não creem em outra vida, e que pagam impostos para viver nesta vida com dignidade – sejam respeitados.
PS.: como enviei este artigo à publicação antes da apuração do carnaval carioca, se valer a pena, talvez eu volte àquele tema.



[1] Dr. em Jornalismo pela USP; Professor da Área de Literatura da UFMT. Atualmente, a convite, escreve às quintas-feiras para o Diário de Cuiabá.

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